sexta-feira, 8 de maio de 2009

Bendita louvada seja Dona Maria do Horto

Há algum tempo não posto nada por aqui. Mas, estive revendo as imagens que trouxe do IV Encontro dos Mestres do Mundo – em Dezembro passado, no sertão do Cariri – e reencontrei com o bendito de Dona Maria do Horto. Um canto sublime que, por obrigação, tenho de compartilhar com vocês.
Lembrei-me do nosso encontro no Crato Tênis Clube. Ouvi uma voz, numa das rodas de debate que estava acontecendo por lá e me aproximei. Com suas vestes e penteados simples e belos, Maria do Horto falava da vida, do fato de ser “moça velha” – mulher de idade relativamente avançada que não se casou – e das razões do seu cantar.
Em seguida, pediu licença à roda, e entoou um bendito homenageando Frei Damião, franciscano italiano que se tornou santo popular no Nordeste. Para os olhos, uma bela manifestação de fé. Para os ouvidos, um fino deleite. Não tem como conter adjetivos para descrevê-la. Imaginei Glauber Rocha gravando a voz de Dona Maria – talvez cantando outro bendito – para integrar a trilha sonora de O Dragão da maldade contra o santo guerreiro.
Passaram-se uma ou duas horas do primeiro contato, encontrei-a, novamente, andando pelo clube. Não hesitei em convidá-la:
- A Senhora pode cantar outro bendito? Eu filmei o de Frei Damião e quero filmar outros.
- Calma aí. Eu vou ali e volto para cantar pru’cê o bendito do meu Padim [Ciço]. – respondeu-me com pressa, demonstrando que tinha algo urgente para resolver.
A volta não aconteceu. Cheguei a vê-la em outros momentos, mas não tive oportunidade de lançar outro convite.
Exatos cinco meses se passaram depois da viagem. Imagino eu que Maria esteja agora na Colina do Horto – comunidade onde mora – na vizinhança do mais notável cartão postal de Juazeiro do Norte: a estátua de 17 metros do Padre Cícero Romão Batista. Vez por outra, ela deve cantar o “bendito do padim” aos pés do monumento, alimentando a alma das toneladas de concreto.
Assunte como é que Maria do Horto canta o bendito de Frei Damião e Frei Fernando.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Um Lero com Silvio Tendler

Na VI Bienal da UNE, bati um lero com Silvio Tendler. O cineasta e professor da PUC-RJ, especialista em cinebiografias políticas, participou da abertura do evento, apresentou seu filme Josué de Castro – Cidadão do Mundo, ainda contribuiu com um bate-papo sobre cinema brasileiro.

Entre os principais trabalhos de Tendler estão Os anos JK, Jango, Glauber - o labirinto do Brasil e Encontro com Milton Santos. Assunte só o que ele me falou...

Por que a opção pela cinebiografia?

Porque quando eu estudei cinema documentário, estudei com um documentarista, o Joris Ivens, que dizia que o cinema precisa de personagem no documentário, à semelhança da ficção. Não fale de um tema em abstrato. Se você quer falar de democracia, fale de JK; se você quer falar de justiça social, fale de Jango; revolução, fale de Marighela; arte revolucionária, fale do Glauber. Então, eu aprendi esta lição com ele e estou fazendo isso. Eu acho que eu poderia falar da democracia como uma abstração, mas, falando do governo JK, estou falando de um momento do Brasil que a democracia funcionou. Eu poderia falar da justiça social, mas, falando do Jango, eu estou falando da justiça social, de reforma agrária, uma série de coisas que funcionaram. Então, é nesse sentido que eu acho que você deve ter personagem. Aí, o filme biografia funciona no sentido de trabalhar uma temática, tendo um personagem como fio condutor.

Há um consenso entre vários biografistas de que é muito mais fácil se biografar alguém que já morreu. Nota-se também que em sua obra existe a predominância de personagens mortos. Você tem isso como preferência?

Não é questão de preferência, é questão de coerência. Como a maioria do meu trabalho é de reconstrução de história política, tenho cuidado de não confundi meu trabalho de historiador com o de propagandista. Você faz um trabalho político de um cara que está vivo, você pode estar se confundindo com a meta de seu trabalho: a minha meta é contar história ou elegê-lo? Eu preciso trabalhar em cima de personagens mortos. Agora, eu não me furto a fazer campanhas políticas desde que eu tenha convicção. Eu fiz o primeiro programa nacional do PCB, fiz o primeiro e o segundo [programa] nacional do PSB, na época da constituinte. Ajudei a interferir na construção de uma constituição democrática. E, já fiz personagens vivos também, mas eram artistas. Fiz [o filme biografia] da [Maria] Antonieta, uma mulher que ensinou o Rio de Janeiro a dançar. Ela está viva até hoje e esse filme tem mais de dez anos. Não é que eu não faça, eu escolho o tema para fazer.

Você, algumas vezes, fez filmes a convite. Como é o caso do Josué de Castro, feito a convite da família dele, e os filmes sobre a UNE [Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil e O afeto que se encerra em nosso peito juvenil] que foram a convite do Projeto Memória do movimento estudantil. Esses convites, de certa maneira, lhe tolhem?

Nunca tive nenhum tipo de constrangimento de, na hora final, disserem “isso pode” “isso não pode”. Nunca fiz filme que corresse o risco de sair com a cara da encomenda e não com a cara autoral. Isso é uma questão discutida antes de o filme começar a ser feito. A gente senta, olho no olho, e discuti o que quer fazer com aquele filme.

Já negou algum convite?

Muitos. Uma vez, eu recebi o convite de um banqueiro. Eu recebi o telefonema de um preposto de um banqueiro – não foi ele quem ligou pessoalmente – perguntando se eu topava fazer a biografia dele [o patrão]. Eu falei: “primeiro eu tenho de estudar a biografia dele, para ver se não tem nenhum ato na vida dele que desmereça. Se tiver, não. Mas, se não tiver, vamos lá. Aí, começou: “Você sabe, tem de ser um filme baratinho, não tem muito dinheiro”. Eu falei: “Meu amigo, eu vou trabalhar baratinho para banqueiro!?Desculpe, tem algum engano”...

Você tem um projeto de filme [Utopia e Barbárie] sobre sua geração, de 1968. Numa entrevista a Paulo César Pereio [no Sem Frescura, do Canal Brasil], você disse que tem preferência pelo tempo presente. Ao trazer à tona o ano de 1968, você acha que o jovem de hoje tem mais o que aprender com aquela geração ou tem de começar uma nova forma de revolução?

Eu aprendo muito mais com o jovem de hoje do que com minha geração. Acho que o resgate histórico sinaliza o futuro. Eu não faço um cinema com nostalgia, com saudades do passado. Não tenho nostalgia, não tenho vontade de viver no tempo do Josué [de Castro]. Tenho vontade de dizer o que o Josué fez e o que é importante que as pessoas, hoje, façam. Não tenho desejo de voltar ao passado. Nenhuma saudade, do ponto de vista de 1968, e nenhuma vontade de ser o general condecorado pelas batalhas de 68. Eu sou uma pessoa que vive meu tempo presente, voltado para o futuro. Eu trabalho do ponto de vista da reflexão. Outro dia, eu estava lendo uma entrevista que eu fiz com um professor meu, um historiador, na qual ele dizia que a história trabalha no ponto de vista da reflexão. A reflexão física também. É aquele raio que bate no espelho e se projeta para o futuro. Você não fica voltado, olhando para historia, com saudades. Eu olho para 68 e digo: “Nós éramos libertários, mas, hoje, estamos num mundo, excessivamente, careta. Vamos trazer um pouco dessa anarquia, dessa rebeldia, e vamos projetar, na vida de hoje para o futuro”. Acho que a vida hoje é bem melhor que no meu tempo.

Você já fez dois documentários sobre a UNE, em comemoração aos 70 anos da entidade. Desta Bienal, você levará mais imagens para um terceiro trabalho?

As moças estão cada vez mais bonitas. Se eu pudesse fazer um documentário poético, eu faria.

sábado, 24 de janeiro de 2009

A ciência popular por Dona Maria Gorda

“A ciência da “abeia”, da aranha e a minha/ Muita gente desconhece”. Os versos de João do Vale e Luís Vieira (confira esta canção interpretada por Tetê Espíndola), que tão bem ilustra a sabedoria popular brasileira, descrevem facilmente a Maria José Menezes dos Santos, a Dona Maria Gorda. Aos 68 anos, ela pratica e repassa os saberes acumulados desde os seis anos, aprendidos através da mãe e da Avó.

Além de rezar, Dona Maria Gorda é uma exímia conhecedora de plantas medicinais. Fabrica artesanalmente beberagens com ervas, a partir da “horta medicinal” que cultiva no quintal. Os remédios são conhecidos e aprovados pela Comunidade do Candeal, bairro onde mora há mais de 40 anos, e por adeptos da fitotepia que chegam de outras freguesias.

Dona Maria tem entre seus “rezados”, além dos vizinhos, uma lista de pessoas “de gabarito”, como ela denomina. É o caso de Carlinhos Brown e o ex-prefeito de Salvador, Antônio Imbassahí. Os saberes da rezadeira foi tema de uma matéria no Globo Repórter em 2008.

Na 6ª Bienal de Cultura da UNE, ela esteve presente na Oficina “Plantas medicinais, reconhecimento, cultivo e manipulação”, ministrada pelo Grupo de Extensão Permanente Farmácia da Terra, composta por alunos de Farmácia da UFBA. Na ocasião, os estudantes puderam conhecer mais sobre a política de plantas medicinais no Brasil, mostrando as peculiaridades da nossa “medicina popular”, sendo esta uma alternativa aos abusos da indústria farmacêutica.
Para aqueles que ainda desconhecem a ciência de Dona Maria Gorda, vai aí a entrevista que fiz com ela.

Quais são os males que a Senhora reza?

Eu rezo de mal olhado, de zipela, de dor de cabeça, de peito aberto, de vento caído, de cobreiro, de fogo selvagem, de impinge, de tudo. Já rezei “meimundo” de gente. Estou aqui, abaixo de Deus, para o que der e vier.

Também é conhecedora de plantas medicinais?

Eu cuido de planta desde os seis anos de idade. Aprendi com minha avó e minha mãe tudo que eu sei hoje. Então, agradeço a Deus e a elas pelo pouco que me ensinou. Quando eu me casei, eu rezava as pessoas lá na Baixa do Tubo, onde eu morei, mas era pouquinho. Vim ser descoberta no Candeal, quando eu rezei uma criatura de peito aberto. Ela já estava desenganada, e ficou boa. É Graciete, mora lá até hoje. O médico disse que não existia remédio, que não tinha reza para isso. Foi uma jornalista lá no Candeal. E, Ela [Graciete] falou: “tem uma senhora que reza aqui, e coisa e tal, eu me curei com ela”. Foi aí que eu fiquei conhecida. Foi a primeira entrevista que eu dei, assim, para sair no rádio, na televisão. Eu dizia assim ao meu marido: “um dia ainda vou sair na televisão, no jornal”. Ele dizia: “Você vai caçar o que fazer, pobre só sai na televisão, no jornal, quando morre, e morre de tragédia”. Eu dizia: “Não, eu vou sair com meus pequenos méritos”. Hoje em dia, graças a Deus, já cheguei até o Globo Repórter, com meus pequenos méritos.

A Senhora está passando seus conhecimentos para alguém?

Ninguém em minha casa quer aprender. Tenho duas filhas que já sabem rezar, mas só de “olhado”. Mas não quer rezar de mais nada, nem quer continuar a rezar de olhado porque ela diz que não tem pique pra isso. Às vezes, tem pessoas que eu pego e me deixam abalada. Ontem mesmo, rezei uma criança e passei mal depois. Me dar calafrios, me dar moleza, essa coisa toda. Então, elas dizem que não estão prontas para isso, não querem. Mal elas rezam os filhos. Sabem rezar, mas, quando os filhos tão moles: “Minha mãe, reze”. Eu digo: “mas você não sabe rezar?”. “Mas minha reza eu não tenho fé, não. Só tenho fé na da Senhora”.
Quem são as pessoas que a Senhora reza?

Eu já rezei Carlinhos Brown, a mãe dele, minhas comadres, meu pessoal todo. Já rezei rei, rainha, o cônsul da Espanha, a princesa e o príncipe, [Antônio] Imbassahí, Paulo Souto. Só não rezei João Henrique porque ele é ...[evangélico]. Antônio Carlos Magalhães quando era vivo. Rezei muita gente, muita gente, gente de gabarito. Gente igual a mim, gente pobre

E a senhora reza lá no posto [de saúde] também?

No posto de saúde! Você não viu no Globo Repórter?

A senhora cobra por esse trabalho?

Isso aqui eu faço e vendo [mostrou algumas beberagens engarrafadas]. Tem de R$10 e de R$6. Porque eu gasto coisa. Aqui eu compro mel, raspadura, açúcar, folhas que eu não tenho, como dandá do rio, cravo, canela... Muita coisa eu compro, mas tem coisa que eu tiro do meu quintal. Tenho minha pequena horta medicinal. Se esse mês eu faço e não cobro, para o mês eu não tenho para repor.

A senhora é ligada a alguma tradição religiosa?

Sou católica. Não sou feita no candomblé, mas gosto do candomblé. Quando eu nasci, prematura de sete meses, minha avó era mãe de santo, entendia as coisas. Me botou de barriga para cima, botou de bruços, de lado... Então, ela disse: “Esta está preparada para o mundo! Quando ela crescer e fizer onze anos e quiser seguir, ela vai fazer a parte dela”. É tanto que eu não tenho medo de macumba, não tenho medo de bruxaria, não tenho medo de nada. Abaixo de Deus, eu não tenho medo de nada. Tem uma pessoa lá no Candeal, a única pessoa, de todos os lugares que eu já morei, que eu tive desavença por causa de filho. A pessoa fez de tudo para me derrubar. Botou macumba na porta. Lutou e não conseguiu, deixou de mão.
Quando a senhora descobriu que seria rezadeira?

Com seis anos eu comecei a aprender, porque minha cabeça sempre foi boa. Doutor Paulo, da Universidade de São Paulo, fez uma entrevista comigo, há uns seis ou sete anos atrás. E disse: “Venha cá, Dona Maria, a senhora tem alguma coisa escrito?”. Eu disse: “Não”. “Como é que a senhora guarda tanta coisa?”. Eu disse: “aqui [aponta para cabeça] e aqui [aponta para o coração]”. Eu ganhei um gravador de primeiro mundo, estou botando algumas coisas no gravador. É para fazer um livro, eu nunca fiz. Pelo menos, amanhã ou depois, eu tenho alguma coisa guardada.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Hoje, em soirée: A volta do Tarzan*

Itarantim, 20 a.v. (antes do videocassete). Na pequena cidade do sudoeste da Bahia, localizada a 180 Km de Conquista, o Cine Teatro Montreal era o cenário de pequenos grandes acontecimentos de cada dia – encontro de amigos, primeiros beijos, lágrimas apaixonadas, risos descontraídos, reflexões vãs e algo mais. Diante da telona, as cadeiras transcendiam-se em ninhos onde a imaginação ganhava asas, e os espectadores constatavam que voar é humanamente possível.

Todos os dias, as películas exibidas nas sessões anteriores iam para Itapetinga para serem trocadas por outras, não necessariamente novas, muitas vezes, já velhas conhecidas dos itarantienses. Numa certa ocasião, depois da exibição de Tarzan, O Rei dos Macacos, o rolo seguiu para a cidade vizinha para ser substituído. Durante todo o dia, a moçada esperava ansiosa a nova história que viria. No lugar de selva e do “Krig-Ha, Bandôlo!”, grito de guerra do Homem criado por gorilas, cairia bem um deserto com os tiros de Django, famoso “cowboy italiano”.

No caminho, havia um obstáculo. Em períodos chuvosos, a estrada de terra entre Itarantim e Itapetinga era uma potencial locação para filmes de aventura, com um agravante que interrompia a cena, as cheias do Rio Pardo. Enquanto a Golden Gate Bridge fazia sucesso nos filmes hollywoodianos, a construção de pontes grandes era algo raro no interior da Bahia. Para atravessar o rio caudaloso, a balsa entrava em cena. Todavia, quando o volume de água aumentava muito, a embarcação, devido à força da correnteza, não podia fazer a travessia. Sem possibilidades de chegar à outra margem, os carros tinham de regressar para a cidade de origem.
E assim, naquela manhã de verão, o filme do Tarzan voltou para Itarantim.

A direção do cinema para não ficar no prejuízo, pôs no cartaz, Hoje, em soirée: A volta do Tarzan. O anúncio causou verdadeiro frenesi entre os cinéfilos, deslumbrados com a possibilidade de assistir a “continuação” do filme do dia anterior.

À noite, o Cine Teatro Montreal estava lotado. Como de praxe, tocou a música “O Milionário”, em seguida, apagou as luzes e deu início à projeção. Logo na primeira cena, ouviu-se um grito, “Ué! Este é o mesmo Tarzan de ontem!”. O comentário excitou outros.“É o ‘mesminho’!”, “A ‘volta’ só foi do Rio Pardo’!”. Em contrapartida, uma pessoa interessada em reviver as emoções da história, bradou por silêncio, “Calem a boca, vamos assistir ao filme!”. Como esta voz representava o desejo da maioria, não houve discussões, e a sessão seguiu bem até o fim.

Este era o Cine Teatro Montreal, não importava a idade do filme, se se tratava de um sucesso de crítica ou uma produção meramente comercial. A chance de ver o mundo além das limitações da pequena cidade e do pensamento mesquinho dos homens fazia daquela sala um lugar ímpar em Itarantim.

*Crônica publicada no jornal da III Mostra Cinema Conquista (2007), baseada nas memórias do itarantiense Magno Luciano, vulgo Véi da Jega.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

João Bolinha, um peixe grande

Maiquinique é um pequeno município do interior da Bahia. A cidade tem esse nome por conta do rio homônomo que a corta. A origem da palavra é indígena e significa “rio de peixes pequenos”. Hoje, o estreito leito tem pouca e poluída água no trecho próximo ao perímetro urbano. Quem não conhece a paisagem, dificilmente imagina que há 30 anos por ali passou um peixe grande que resolveu morar na terra e até hoje não quis voltar a nadar. O peixe é poeta, o poeta João Bolinha.

João Pereira da Silva, nome de registro dele, nasceu e despertou para as letras em Condeúba (BA). Assim como Patativa de Assaré, foi alfabetizado através do curso primário de Felisberto de Carvalho (1850-1898), autor de livros didáticos que deixou marcas na educação brasileira desde o período de transição entre a monarquia e a república até meados do século XX. Ainda menino, descobriu a paixão por Castro Alves e a vocação pela liberdade.

Com uma Rosa-dos-ventos, adornando o bolso do seu paletó, propagou versos por todos os cantos. Em Itambé (BA), ouviram-no muitas vezes. Em Montes Claros (MG), dedicou-se ao ofício de barbeiro. Quem pagava por barba, cabelo e bigode, ganhava um recital de brinde. Lá, Darcy Ribeiro se tornou seu cliente cativo. Outro fato marcante na cidade do norte de Minas foi uma valsa dançada por Juscelino Kubitschek, assistida por Bolinha. Ele jamais se esqueceu dos dotes de dançarino do presidente. Encontrou JK, anos depois em Brasília, e não resistiu, pegou na mão do mandatário e disse:

- O Senhor é um grande valsista!

Brasília, os homens e a cabeça

Era difícil fazer acordo no fio do bigode na capital federal, diferente do sertão de Bolinha. No interior da Bahia, quando alguém comprava alguma coisa e não tinha dinheiro para pagar, dava um fio de bigode como “promissória”. A grossura e a cor do pêlo, avalizado por uma palavra firme, valiam mais que qualquer documento assinado por um homem. Já em Brasília, o que sempre valeu é o preto no branco, acordo oral muitas vezes é sinônimo de maracutaia. O poeta talvez não refletisse sobre esses assuntos cabeludos quando saiu de Montes Claros para assistir a inauguração do “novo eldorado” brasileiro e tentar fazer um “pé-de-meia”. O trabalho numa barbearia na Câmara dos Deputados e as poesias garantiram-lhe, respectivamente, pão e novos amigos por lá.

Por ser um “poeta tribuno”, como se autodefine, João nunca precisou de papel para passar horas declamando Castro Alves, Augusto dos Anjos, Camilo de Jesus Lima e, claro, suas próprias poesias. Inspirado pelas curvas de Niemeyer, ele freqüentou rodas de intelectuais, festas e saraus até o golpe de 64, quando um amigo o alertou:

– João, vá embora que os homens querem sua cabeça!

Se um desconhecido lhe pergunta, hoje, quem foi esse companheiro, ele traga profundamente o cigarro, bate a cinza, solta a fumaça e responde:

– Darcy Ribeiro!

– O Senhor conheceu o Professor Darcy Ribeiro? – delira aquele que pergunta.

– Um homem de uma capacidade incrível! – treplica sem dar muitos detalhes, dando asas à imaginação do curioso.


Como Brasília não tem mar para o peixe grande se entregar à imensidão, Bolinha procurou a primeira rodagem e saiu a flanar pelo Brasil. No caminho, conquistou muitos camaradas, muitos novos versos, muitos amores e, conseqüentemente, 22 filhos.

Maiquinique: a derradeira parada

A vida nômade se encerrou com a chegada a Maiquinique, em meados dos anos 70, onde encontrou sua amada, Nicinha, experimentou da água e constatou que ali deveria se banhar por muitos anos. Num terreno, na extremidade da cidade de então, construiu sua moradia, batizando-a poeticamente de “Sítio Pau Pereira”. Não por acaso, Pereira é o sobrenome de João e o nome da madeira que a meninada extrai a forquilha do estilingue.

Em Maiquinique, ganhou o sobrenome artístico, Bolinha, por conta de uma brincadeira de boteco. João apresentava uma esfera e três tampinhas de cerveja para um determinado sujeito. Na seqüência, misturava a bola entre as tampilhas para o camarada adivinhar o destino final do objeto redondo. Se o camarada não acertasse, pagava a cerveja, fonte usada para desinibir versos.

Hoje, aos 84 anos, João Bolinha continua no “Sítio Pau Pereira” junto com Nicinha. A cidade cresceu em torno da propriedade, mas ele continua a cultivar seu templo. Planta seu próprio alimento, fabrica licores artesanais, pinta cabaças, reclama da saúde, escreve e sonha. O artista pretende transformar parte da sua residência na “Casa da Cultura João Pereira da Silva”.

Todos os interessados num bom papo cultural podem bater na porta da casa dele. Só precisa de um pré-requisito: ter muito tempo para ouvi-lo. Depois da segunda hora de conversa, é muito fácil associá-lo ao personagem Ed Bloom, do filme Peixe Grande (Big Fish. Tim Burton. EUA, 2003), exímio contador de história que, no delírio de morte, transforma-se num enorme peixe e continua a viver. Ed, prestes a falecer, explica para seu filho, Will, que o peixe só é grande porque ninguém consegue pescá-lo. João Bolinha idem.


Abaixo, duas poesias declamadas por João Bolinha. A primeira, "Eu e um punhado de versos", é do próprio poeta; a segunda, "O Tédio", é de Henrique Hine.








quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O Bruto também ama?

A literatura de cordel tem o poder de construir mitos ao ponto de torná-los verdadeiros arquétipos*. Desta maneira, poetas e cantadores, em versos dos mais diferentes estilos, mitificaram Joaquim dos Santos Rodrigues, metamorfoseando-o no arquétipo de homem grosso, enfezado, bruto, pai d’égua, ignorante, “popêro”. Mesmo não sendo conhecido pelo nome de batismo e sem citar a alcunha imortal do sujeito, já dar para o leitor fazer uma fezinha certeira sobre o nome do cabra. Se ainda resta dúvida, o nome dele é Seu Lunga.

Em Juazeiro do Norte (CE), nós – Glauber Lacerda (o sorridente da foto), Andrade Leal, Andrade Sertania e Ana Sertania– encontramos pessoalmente com ele. Um dia antes do encontro, fomos até a casa de Seu Lunga para saber se ele podia nos atender. A filha dele, que estava entrando em casa no momento de nossa chegada, pediu para procurá-lo no dia seguinte. Ele estaria, cedinho, em sua oficina, na Rua Santa Luzia. Nem adiantava prolongar a prosa, Lunga não recebe curioso em casa.

Às 8h, já estávamos na tal rua, pedindo informação para encontrarmos o afamado “rei do mau humor”. A ansiedade era unânime para saber como seríamos recebidos. Tínhamos a romântica esperança que teriamos uma recepção ríspida, digna de Satanás em igreja de crente, assim poderíamos espalhar por aí que o temperamento de Seu Lunga, dos cordéis e das piadas, não é romanceado, ou seja, o cabra seria bruto feito cadela parida "mermo". Batemos a boca no arame, encontramos um homem inesperado.

Logo na porta do estabelecimento, a primeira visão da lenda. Atrás de um monte de ferro velho, parafusos, calçados usados, arreios, avistava-se a ponta do chapéu do figura, como o cume de um “iceberg seco”. Os trinta minutos que estivemos com o suposto ranzinza não foram suficientes para conhecê-lo perfeitamente. Até porque, segundo ele, para uma pessoa conhecer outra, é preciso comer “uma saca de sal” juntas**. Haja feijão para temperar e almoço para comer na mesma mesa! Com esse discurso, Lunga se defende, fala que é muito caluniado pelo povo.

À primeira vista, Seu Lunga não tem nem a santidade do seu xará, o avô de Jesus, São Joaquim, nem a grossura de um cano de esgoto. Foi marcante conhecer outro lado do mito, sem a necessidade de desmitificá-lo, visto que são claras algumas ligações entre a personagem fictícia e a real, principalmente, no quesito intolerância para “imbecilidades”.
Descobrimos nele o poeta, o conhecedor de muitos dizeres, o devoto de Padre Cícero. Para que cada um tire suas conclusões, vai aí todo nosso encontro filmado.

Talvez os “politicamente corretos”, doravante, pensarão duas vezes antes de chamar um sujeito "brabo" de Seu Lunga. Já quem não cumpri esses protocolos, e acredita que o mitos são muito mais interessantes que as pessoas reais, apenas assistam e continue propagando as ilustres respostas do lendário pai d'égua do Sertão do Cariri.

*O autor não tem conhecimento profundo sobre o tema, portanto, arquétipo, nesse sentido, tem uma conotação vulgar. Consiste em dar o nome de determinado personagem que possui alguma característica marcante a outrem que também a possui. Por exemplo: o sujeito metido a esperto é chamado de João Grilo, portanto, João Grilo é o arquétipo de esperteza.

** Extraído da Monografia “A fantástica contrução do nordestino Seu Lunga, de Ester Lindoso.


Obs: Antes de escrever esse texto, pesquisei um pouco sobre seu Lunga na web e vi que lá tem até monografia sobre a construção deste mito nordestino. No Youtube, existem algumas piadas e cordéis sobre Seu Lunga, além de vídeos de outros autores.





segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Rumo à Meca nordestina

Uma das viagens mais inusitadas de minha vida foi, sem dúvidas, a ida para o IV Encontro de Mestres do Mundo, no Cariri cearense, na semana passada. Fiquei sabendo do evento uma semana antes da abertura, mas, a priori, nem cogitei em ir para a terra do Padre Cícero, pois estava sem dinheiro e sem a disposição dos antigos romeiros que, antes do advento do pau-de-arara e das marinetes caindo aos pedaços, partiam a pé ou de jegue para Juazeiro do Norte no intuito de cultuar o beato.

Eis que surge algo inesperado. Eu me encontrei com um amigo que estava indo para Mossoró e perguntou se eu queria ir com ele. A tentação foi tamanha que oprimiu qualquer vontade de dizer “não”. Só fiz uma pequena ressalva:

– Eu vou até Juazeiro do Norte, você me leva?

– Levo – respondeu sem titubear.

A empolgação tomou conta de mim, comecei a delirar diante da chance de viajar. Na verdade, eu nem sabia se Juazeiro estava na rota para Mossoró. Consultei o Google Maps e descobri, então, que eu teria de ficar em Brejo Santo, a 70 quilômetros de Juazeiro.

Eu fiquei sabendo que Andrade, um conhecido de Vitória da Conquista também iria, entrei em contato com ele e falei que talvez nos encontrássemos no Cariri. Ainda não tinha certeza se a viagem daria certo, pois, quem me ofereceu a carona ia a trabalho e não podia dar “ponga” para ninguém. O jeito seria apelar para a clandestinidade.

Dois dias depois, numa segunda-feira, lá estava eu na estrada, rumo à Meca do sertão nordestino. Em partes, sentia-me como um muçulmano em primeira umra*, cada vez mais próximos de tradições intimamente ligadas à minha formação identitária.

Às quatro horas da madrugada, do dia 2 de Dezembro, cheguei em Brejo Santo. A “escala” foi rápida. Mal desci na Rodoviária, chegou um ônibus para Juazeiro. Era um carro leito, não pegava passageiro no caminho, mas conversei com o motorista que compadeceu ao ver o tamanho da minha mochila e o “Deus seja louvado” numa nota de R$ 10, entregue a ele, pessoalmente.

Ao descer em Juazeiro, pedi a um moto-taxista que me levasse até uma hospedaria barata. O motoqueiro me conduziu até uma pousada cuja fachada me lembrou um boteco. Enquanto eu tirava o capecete, ele se adiantou, tocando campainha. Neste ínterim, fiquei imaginando que se tratava de uma dormida com direito a uma acompanhante. “Não tenho cara de religioso, mas será que este camarada está pensando que os motivos através dos quais cheguei no Sertão do Cariri são tão carnais assim?”, devaneava profanamente.

Abriu-se uma pequena fenda, na sequência, a porta inteira escancarou. Ao entrar, dei-me conta da religiosidade da casa e a possibilidade de ter sido levado para uma hospedaria boêmia foi minguando. Uma imagem de Padre Cícero Romão com cerca de 70 centímetros estava ali em minha frente. Era apenas uma das milhares vistas pela cidade, em todos os tamanhos e com adereços diversos.

– Quanto é a diária? – perguntei à mulher, ainda de pijama, com expressão de sono.

– R$ 15, o quarto com ventilador – respondeu entre bocejos.

Dei uma olhada no leito simples. Não me agradou. A alma burguesa sufocou o aventureiro, pedindo mais conforto.

Subi novamente na moto e pedi para me levar até um hotel no centro da cidade, mais próximo do Memorial Padre Cícero, onde o Encontro aconteceria. O caminho para o centro era uma descida só. O piloto colocava banguela na motocicleta quando era possível. Se para baixo todo santo ajuda, não falta santidade para ajudar no Juazeiro. Além das dezenas de lojas de artigos católicos, a estátua do "Padim", em destaque num ponto alto da cidade, marcou minha primeira incursão pela cidade. Imaginei as ruas cheias nos períodos de romaria. Lembrei-me do pouco que li sobre o "cânone popular", principalmente na literatura popular. Dirigi um pequeno filme mental, com imagens envelhecidas, como se fosse feitas em Super-8.

Chegamos no Hotel Guanabara, era um pouco melhor que o estabelecimento anterior. A localização, porém, foi fundamental para escolhê-lo como base. Logo na porta, vi uma cena que me fez questionar sobre o tamanho da população de Juazeiro, 242.000 habitantes, conforme havia lido na internet. Um vaqueiro tangendo uma boiada no asfalto, como se fosse nas ruas calçadas da minha pequena Maiquinique, na Bahia, onde o número de habitantes oscila em torno de 7000 habitantes. Aquilo não era nenhum atraso, parecia-me mais a real possibilidade de ver a interseção de épocas distintas. O tempo fez-se um grande poeta e o encontro dos costumes seus versos mais sublimes.

Deixei meus pertences no hotel. Apesar do cansaço, não resisti a uma volta pelas redondezas, estava ansioso para registrar algumas cenas daquela cidade que parecia conservar costumes que há muito eu não via no “meu sertão”. Queria eu constatar se o acontecimento visto a minutos atrás foi apenas algo efêmero, impossível de ser observado novamente, através dos meus olhos de turista.

Aos poucos, entre os quadros registrados e os relatos ouvidos, regressei a um universo onde o ritmo do tempo está entre o movimento vagaroso do sol escaldante que leva horas para descrever um dia e o frenesi de uma urbis em crescimento.

Descrevo em imagens minhas primeiras impressões.

*Peregrinação sagrada para Meca. Diferente do Hajj, que acontece num período específico, a umra pode ser realizada em qualquer época do ano.





De cima para baixo: Memorial Pe Cícero, ex-votos no Museu de Padre Cícero, Lan House itinerante [na faixa: Romeiros e Romeiras faça seu pedido virtual para Padre Cícero. Não paga nada.], orelhão símbolo da cidade, oratório dos devotos do Padre Cícero, imagens do "Padim", estátua de Luiz Gonzaga e "mega-castiçal" para romeiros.